Cíntia Viviane Ventura da Silva
Carmen Argiles
Valéria Coimbra
Esse trabalho
é um relato de experiência de acompanhamento terapêutico (AT) na rede pública
do município de Pelotas/RS, mais especificamente em um Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS).
Considerando a
criação dos CAPS como estrutura de reinserção da pessoa com sofrimento psíquico
em seu contexto social, com o objetivo de promover não só a sua qualidade de
vida e de seus familiares, mas também o respeito à sua singularidade (BRASIL,
2001), o acompanhamento terapêutico vem como uma ferramenta de auxílio no
cuidado à saúde mental na rede pública, dentro desses novos espaços de atenção.
O AT surge na
década de 60 através das comunidades terapêuticas, como recurso da reforma
psiquiátrica e da luta antimanicomial. Sofre influências da antipsiquiatria
inglesa e da psiquiatria democrática de Franco Basaglia (PITIÁ; SANTOS,
2005). As comunidades terapêuticas
funcionavam em hospitais psiquiátricos e possuíam uma figura terapêutica que
permanecia com os pacientes no dia-a-dia objetivando construir um meio social.
Silva (2005,
p. 44) faz uma referência ao contexto histórico-político em que o surgimento do
AT se deu:
na
constituição do seu campo, o Acompanhamento Terapêutico mostrava-se como um recurso auxiliar para pacientes graves, alguns considerados
“crônicos”, que ia de encontro a uma
lógica que desejava deixar a pessoa que é rotulada de louca apenas dentro dos hospitais
psiquiátricos. Assim, desde sua configuração inicial o AT mostra essa ruptura
com o “modelo de saúde” que busca isolar
dentro do hospício, controlar todas as manifestações anormais para depois
“tratar”. (SILVA, 2005, p. 44)
Palombini
(2004, p. 78) conceitua o AT “como uma clínica em ato, onde o setting é a cidade: a rua, a praça, a
casa, o bar. Uma clínica em que a palavra e também o corpo, os gestos, as
atitudes contam”. Ela o define como um dispositivo clínico-político (PALOMBINI,
2006).
Para Silva
(2005, p. 41), “o AT pode ser uma prática de integração, uma atividade
revolucionária, uma prática de inclusão”. Ele segue falando da questão do setting, ou melhor, dos múltiplos settings em que a estratégia do AT
permite ao trabalho terapêutico, afirmando que “[...] a prática do AT se dá em
vários espaços, não ocorrendo apenas na cidade de concreto (mas também no
quarto, na sala, na lanchonete, no sítio, no consultório, na festa, na praia,
no campo, etc.)” (SILVA, 2005, p. 80).
Dentro das
possibilidades do AT ainda trazemos Lancetti (2006, p. 25-26), que nos diz que
“o acompanhante na sua intimidade amigável pode conectar ao mundo, realizar
agenciamentos [...] e furar o cerco”
(grifo nosso).
METODOLOGIA
O
trabalho é realizado em acompanhamentos individuais, uma vez por semana. O
acompanhamento ainda está acontecendo. O usuário possui diagnóstico de retardo
mental moderado, conforme prontuário no serviço. Os
acompanhamentos foram descritos e fichados e depois foi realizada uma análise
das narrativas. O tempo destes encontros é de uma a três horas, dependendo da
demanda organizada para o encontro. A definição do que iremos fazer, vem do
desejo do usuário, do que ele tem vontade de realizar naquele momento adequando
às possibilidades. Desde tomar um chimarrão na praça até visitas em série aos
museus da cidade de Pelotas em comemoração aos seus 200 anos. Temos então como
metodologia de trabalho o acompanhar o sujeito em suas demandas, uma vez por
semana.
RESULTADOS E
DISCUSSÃO
O
acompanhamento terapêutico é realizado com um usuário
do CAPS Fragata, da cidade de Pelotas/ RS. Ele foi indicado pela equipe
do serviço estar apresentando dificuldade de se organizar em seu cotidiano. O usuário possui o diagnóstico de retardo
mental moderado, conforme consta em prontuário.
O
acompanhamento é realizado uma vez por semana. Foi realizada uma visita à
residência do acompanhado, com o objetivo de conhecer onde mora, seus costumes,
suas preferências, conhecer seus familiares, explicar a esses como será o
trabalho, a importância da participação deles no mesmo e ouvir suas demandas,
suas apreensões e impressões. Também buscamos essa estratégia como uma forma de
estreitar/estabelecer o laço entre os familiares do usuário e o serviço.
João tem 41
anos, é solteiro, não possui filhos, nunca foi casado, mora com a mãe que sofre
de depressão, e com a prima que também é atendida no serviço. Possui outros
cinco irmãos que são casados e moram com seus cônjuges. O pai é separado da mãe
há mais de trinta anos e mora em outra cidade. João o visita esporadicamente,
passando alguns dias com ele nos feriados mais prolongados. Além da dificuldade
intelectual, João possui anquiloglossia. Esta patologia limita os movimentos da
língua; é comumente chamada de “língua presa”. Desta forma, a sua comunicação
também é difícil porque não consegue articular de forma adequada as palavras.
Isso também prejudica sua habilidade social, e é um fator que soma à sua
dificuldade de inserção na sociedade. Durante o verão, João trabalha
informalmente como vendedor de picolés. Sua condição econômica é muito baixa. A
mãe tem dificuldades para estimular a independência do filho, protegendo-o de
forma excessiva, e administrando até mesmo o salário que ele recebe da
assistência social como aposentado. Isso gera muitas brigas entre os dois. A
prima está morando com eles há pouco tempo e também acontecem atritos entre
eles, por vários motivos, um deles é o ciúme que ela sente da tia com o primo.
Ela não possui mãe, era moradora de rua antes de ser atendida no CAPS. Em
virtude da necessidade de independização da figura materna, de trabalhar a autoconfiança
pra agir de forma mais autônoma e de lidar com as situações de conflito na
família, surgiu então a indicação de AT.
No início do
acompanhamento foi realizada uma avaliação terapêutica ocupacional com o usuário. Observou-se que as principais demandas de
João são a comunicação, a orientação organizacional de seu autocuidado e a
relação com a família. Os objetivos de trabalho são estimular a autonomia e
independência do usuário o máximo possível.
Também possibilitar uma organização emocional para este poder suportar e dar
conta das situações que ocorrem em sua casa, com seus familiares.
Os
acompanhamentos duram uma hora em média. Logo nos primeiros acompanhamentos,
João manifestou o desejo de escrever o que fazíamos. Fomos até à livraria, ele
escolheu um caderno, e foi comprado para ele. Com nosso auxílio ele preencheu o
caderno com seus dados de identificação, e o nomeou de “Caderno de
Acompanhamento Terapêutico”. Neste caderno, conforme a sua disponibilidade e
possibilidade, ele vem registrando as atividades que realizamos. João tem
dificuldade para escrever em casa. Relata que ao pegar a caneta ou o lápis,
suas mãos começam a tremer e ele não consegue. Muitas vezes, ele leva o caderno
para o CAPS para lá poder escrever. O caderno também auxilia na nossa
comunicação, porque como ele escreve exatamente da mesma forma como fala, ao
ler eu consigo entender sua forma de falar e vou me apropriando disso para
entendê-lo melhor.
Conforme
Barretto (2005, p. 202), o AT é “uma ajuda especializada em funções que
pertencem à vida mesmo. Tentamos potencializar aquilo que está, ou deveria
estar presente na vida de cada um”.
Desta forma, buscamos potencializar em João ferramentas para enfrentar
as questões de sua vida que por hora o desorganizam emocionalmente.
No decorrer
dos acompanhamentos, no qual ele escolhia aonde íamos, ele trouxe a idéia de
fazermos visitas aos museus, em virtude das comemorações do bicentenário da
cidade. Assim passamos a fazer um roteiro para nossas incursões a estas
instituições, nos orientando pelo guia oferecido pelo município com a lista dos
museus.
Através dessas
andanças, vamos trabalhando com ele as suas questões. E aos poucos ele está
apresentando melhoras. Ainda estamos em processo de atendimento, porém já é
possível verificar algumas mudanças: sua postura mais calma, seu cuidado
consigo mesmo se apresentando de forma mais apurada, com mais higiene e mais
capricho. Ele relata que as brigas em casa diminuíram, tanto com a mãe, quanto
com a prima.
O AT promove
um espaço de atenção para o acompanhado onde ele pode transitar de forma
cuidada pelos espaços em que deseja e também fazer trocas com outro sujeito que
ali está de forma integral, olhando-o também como um outro integral. Através de
nosso trabalho, podemos afirmar que o AT é uma profícua ferramenta de
reinserção social e estratégia terapêutica, indo ao encontro das diretrizes da
lei 10.216/2001. Entendemos que o trabalho de AT, nos centros de atenção
psicossocial, é uma demanda que coincide com o objetivo do serviço, fazendo
então, com que ele seja, de caráter urgente e emergente, uma atividade a ser constituída
e implementada nos serviços substitutivos.
CONCLUSÃO
Através da
prática do acompanhamento terapêutico, no serviço de saúde mental, entendemos que a função do AT vai ao
encontro do que preconiza as atuais políticas públicas de saúde mental (Lei
10.216), trazendo ao sujeito outras possibilidades além do
asilamento/isolamento.
Dentro do
processo do acompanhamento terapêutico, pudemos divisar melhoras de João nos
âmbitos de autocuidado, relacionamento afetivo com os familiares e trânsito
mais independente na cidade.
O trabalho nos
possibilitou observar a importância do acompanhamento terapêutico nos CAPS.
Perpassando a prática do acompanhar terapeuticamente, há a permissão para a
pessoa em acompanhamento, constitua-se como sujeito de direito, recebendo um
investimento que em muitos casos pode já haver definhado, tanto por parte dos
cuidadores/familiares quanto do meio social em que vive.
Salientamos
que muito ainda há para ser conquistado nesta área, porém a implantação do
acompanhamento terapêutico em serviços de atenção à saúde mental na rede
pública é um avanço inegável na busca por uma humanização do cuidado com o
sujeito portador de sofrimento psíquico.
Através
dos resultados que alcançamos até o momento com o trabalho, podemos indicar o
acompanhamento terapêutico como uma proveitosa e útil ferramenta de trabalho no
processo de inclusão social em vários âmbitos, podendo auxiliar no tratamento
das pessoas cuidadas no CAPS, passando do imaginário utópico, para uma prática
de real eficiência.
REFERÊNCIAS
BARRETTO,
Kleber Duarte. Ética e técnica no
acompanhamento terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. 3. ed.
São Paulo: Unimarco Editora, 2005.
LANCETTI,
Antônio. A amizade e o acompanhamento terapêutico. In: SANTOS, R. G. (org.). Textos, texturas e tessituras no acompanhamento
terapêutico. São Paulo: Instituto
A Casa / Editora Hucitec, 2006.
PALOMBINI,
Analice de Lima. Acompanhamento
Terapêutico na Rede Pública: a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2004.
PALOMBINI, Analice de Lima. Acompanhamento terapêutico:
dispositivo clínico-político.
Psyche, São Paulo,
v. X, n. 18, p. 115-127, set/2006.
PITIÁ, Ana
Celeste Araújo; SANTOS, Manuel Antônio dos. Acompanhamento terapêutico: a construção de uma estratégia clínica.
São Paulo: Vetor, 2005.
BRASIL, Portal da Legislação. LEI No 10.216, DE 6 DE
ABRIL DE 2001. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm Acesso em 20/08/2011 17:34.
SILVA, Alex
Sandro Tavares da. A emergência do
acompanhamento terapêutico. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e
Institucional). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005.
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O trabalho acima foi apresentado no "Simpósio de Acompanhamento Terapêutico e Saúde Pública", organizado pela ATTENDA, em agosto de 2012, em São Bernardo do Campo/SP.
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Cíntia Viviane Ventura da Silva Acompanhamento terapêutico em um centro de atenção psicossocial de Pelotas: a utopia como possibilidade |
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Obrigada à ATTENDA pelo evento maravilhoso! |
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