Cíntia Viviane
Ventura da Silva – UFPel
Lisiane Machado de
Oliveira-Menegotto - Universidade Feevale
Nosso relato se refere ao trabalho de
acompanhamento terapêutico escolar com uma aluna que fora acompanhada por nós,
com diagnóstico de Transtorno Global do Desenvolvimento, durante o turno
escolar, diariamente. A aluna estava na segunda série e apresentava
dificuldades de aprendizagem e de relacionamento com os colegas. Em certos
momentos demonstrava dificuldades de permanecer dentro da sala de aula,
manifestando agressões aos colegas e aos objetos que estavam ao seu alcance.
Sua fala era restrita, uma vez que pouco conseguia manifestar-se por meio de
palavras. Nessa perspectiva, a demanda de trabalho consistia em favorecer o
processo de inclusão dessa aluna, buscando uma maior autonomia em relação à
linguagem e, consequentemente, às tarefas escolares.
Acompanhar uma criança com NEE[1] é uma tarefa que se renova a cada dia. As necessidades
mudam, de modo que cada aula é uma demanda nova. Neste sentido, a presença de
alguém com a função de estar atento aos códigos, ao pathos do aluno, bem como as suas potencialidades é algo
fundamental. O estado de atenção do outro, que toma as manifestações da criança
como apelo, numa perspectiva de comunicação, foi destacado por Freud
([1895]1987), ao falar sobre a experiência de satisfação. Freud entende que o
desamparo do bebê requer a atenção de uma pessoa experiente, que toma o choro, entre outras
descargas do excesso de tensão psíquica no corpo. Instaura-se um processo de
comunicação em que o outro interpreta e inscreve o simbólico no corpo da
criança.
Observamos esse aspecto e a importância do
olhar do outro, na posição de at escolar, sobretudo, quando Laura[2] demonstra incômodo em alguns momentos de convívio com os
colegas no espaço da sala de aula. Entendemos que aquela é uma vivência de excesso
e diante disso, oferecemos à aluna a alternativa de sair da sala, no sentido de
auxiliarmos a reconhecer essa experiência e a armar recursos para enfrentá-la.
Nesse caso, não tomamos a saída como uma punição, procedimento comum no
ambiente escolar, mas como uma via de recomposição subjetiva, a fim de
viabilizar o seu retorno para sala de aula mais integrada. Nessas saídas,
portanto, buscamos interpretar a sequência de fatos que a levou a ficar incomodada.
Percebemos, nesse sentido, que a desorganização da turma ou até mesmo o fato de
a professora aumentar o volume da voz a deixava incomodada, gerando um estado
de desintegração.
Conforme Winnicott (1983), a desintegração é
uma defesa sofisticada contra a ansiedade inimaginável da falta de segurança no
estágio de dependência absoluta. O papel da integração do ego acontece no
início do desenvolvimento emocional da criança quando ela está passando do
estágio de dependência absoluta para a relativa e, por fim, para a
independência. Ainda nas palavras do autor:
A integração está
intimamente ligada à função ambiental de segurança. A conquista da integração
se baseia na unidade. Primeiro vem o “eu” que inclui “todo o resto é não-eu”.
Então vem “eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma
interação introjetiva e projetiva com o não-eu,
o mundo real da realidade compartilhada”. Acrescente-se a isso: “Meu existir é
visto e compreendido por alguém”; e ainda mais: “É me devolvida (como uma face
refletida em um espelho) a evidência de que necessito de ter sido percebido
como existente” (Winnicott, 1983, p. 30).
Nessa perspectiva, consideramos o trabalho do
at compatível com a função materna, sendo uma espécie de ego auxiliar,
possibilitando ao aluno suportar o confronto com o não-eu. Sair da sala de aula
é possibilitar a experiência de ter a sua existência percebida e compreendida,
no sentido de tentar integrar a experiência que é vivida em pedaços.
As saídas de sala de aula também apresentam
um caráter pedagógico, uma vez que possibilitam aprendizados. Entendemos que as
saídas se constituem em uma “sala de aula itinerante”, na medida em que a
aprendizagem não se restringe a um espaço físico. Sendo assim, além de
reconhecermos e trabalharmos com os incômodos de Laura possibilitamos um espaço
de aprendizagem na volta no ginásio, na leitura de um livro que na biblioteca,
no caminhar entre as árvores no pátio cantando cantigas, etc.
Todas as crianças são únicas em sua
expressividade e as crianças com NEE não fogem a esta regra. A diferença entre
elas não está somente no modo como elas falam, andam, sentem ou vivem. Está,
sobretudo, no modo como nós as percebemos. Conforme Jerusalinsky (1997, p. 23),
“o que não se diz, de alguma maneira, necessariamente, se manifesta”. Laura
manifestava através do contato físico bruto, o desejo de conhecer o outro, de
estabelecer os contornos entre o eu e o outro, enfim, de inscrever uma relação.
Pudemos entender isso ao analisar com quem ela tinha este tipo de atitude.
Observamos que a maior frequência destas situações (de agressão) era justamente
com as meninas pelas quais ela demonstrava mais afeição. Desta forma, para nós
ficou claro que suas formas bruscas de interagir eram apenas tentativas de
comunicar-se com os outros colegas, buscando estabelecer um contato e uma
troca.
Numa das
várias situações em que para Laura era insuportável estar dentro da sala de
aula e nos demonstrava isso de forma agressiva, atirando os materiais no chão,
machucando os colegas, etc., ao dar uma volta pela escola, a at permitiu que a
aluna a guiasse. Laura, então, lhe pediu que a levasse para a pista de
atletismo da escola, um lugar arborizado, com muitos passarinhos e canteiros de
flores. No caminho, Laura e a at foram cantando inúmeras cantigas, sobretudo,
aquelas cantadas na sala de aula. Nos intervalos, ela reproduzia sons que,
inicialmente, para a at, eram estranhos. Ela dizia por exemplo: “êêêê-tinnnnnhu-élliiiiiiiiiinho-ão-a-ninha-ão”
dirigia o olhar para a at e pedia que ela cantasse. Essa cena repetiu-se
inúmeras vezes, até que a at entendeu que o
“êêêê-tinnnnnhu-élliiiiiiiiiinho-ão-a-ninha-ão” era “meeeeu pintinho
amareliiiiinhooooo, cabe aqui na minha mão, na minha mão”. O sentimento vivido
pela acompanhante e pela acompanhada foi de comunhão, foi de encontro. Afinal,
a at estava escutando-a e entendo-a. Tal olhar atento da at foi possível,
sobretudo, nesses momentos de encontros fora da sala de aula. Nesse sentido,
sair da sala de aula com o aluno não é um sinal de fracasso pedagógico. As
saídas possibilitam um olhar mais atento à subjetividade do aluno, permitindo
um trabalho que seria limitado na sala de aula, diante dos demais colegas.
Bem como
as saídas permitem contemplar a subjetividade do aluno de forma mais centrada,
também a presença do acompanhante terapêutico, mesmo dentro da sala de aula,
possibilita a captação de códigos de comunicação que por vezes passam
despercebidos. É o caso acontecido quando de nosso passeio a um museu de
tecnologia de uma universidade. No referido museu, havia uma máquina onde as
crianças apoiavam as palmas das mãos e quando o assistente acionava o mecanismo
as crianças recebiam descargas elétricas leves, mas suficientes para que seus
cabelos ficassem arrepiados e levantassem contra a gravidade. Já na sala de
aula, no dia posterior ao passeio a professora pergunta aos alunos o que mais
gostaram no museu. Antes que qualquer um dos alunos responda verbalmente, Laura
leva suas mãozinhas ao cabelo e o levanta, imitando o efeito que a máquina
produziu. Estando ao lado de Laura, a at
pode perceber sua fala em forma de gesto e chamar a atenção da professora que
ouvia as falas dos outros alunos excitados em expressar suas percepções do
museu. Desta forma, sua expressão e sua percepção puderam também ser ouvidas.
Reis Neto (2011) fala do
indivíduo condenado a uma solidão por sua comunicação delirante ou inadequada.
Conforme o autor, este indivíduo não promove o laço social por não ter sua
bizarrice compreendida. Em casos assim, o AT pode facilitar a criação de novos
laços, oferecendo a escuta que abre à singularidade (REIS NETO, 2011).
Nas palavras de Jerusalinsky (1997, p. 15),
“o sujeito humano não é mais do que linguagem, e fora dela não é nada”. A
linguagem é o único campo onde o sujeito pode se articular, o único modo de ser
é o falar. Corso (1997) afirma que poder instalar uma transferência permeada de
escuta e de olhar é um “passaporte para a linguagem” (p.28). Podemos, nesse
sentido, pensar acerca da importância de se estabelecer, através do vínculo, um
canal de comunicação com o aluno com NEE, levando-se em conta que não estaremos
apenas conversando ou entendendo, e sim permitindo que um sujeito ali se constitua,
entendendo aqui sujeito como sendo da linguagem.
É preciso entender, é preciso ser
entendido. É preciso escutar, é preciso falar. É preciso, acima de tudo,
estabelecer um tipo de comunicação. Frases banais, perfeitas para um manual de
relacionamentos. Aqui, no entanto, referem-se a algo pouco óbvio, e muito menos
corriqueiro. Comunicar-se por meio da fala e da escuta requer, para além do
interesse, uma língua comum. Entender e ser entendido são tarefas pouco simples
no diálogo entre neurose e psicose, situação frequente nas histórias de
acompanhamento. Dois discursos que, numa conversa, correm o risco da surdez, da
não-escuta (BARBOSA, 2006, p. 29).
Por este
episódio da descrição do museu de tecnologia visitado pelos alunos, podemos
dizer que Laura entendeu. Foi entendida. Escutou. E também falou!
No decorrer de nosso acompanhamento Laura foi
aos poucos se integrando à rotina da turma e diminuindo os episódios de
agressão. Pôde suportar por mais tempo o estar em sala de aula, espaçando cada
vez mais a necessidade de sair para o pátio. Tendo respeitado o seu
desenvolvimento emocional, conseguiu sentir segurança no ambiente em que estava
inserida.
Através
do holding desempenhado pela at foi
possível realizar um trabalho de caráter inclusivo. Desmistificando sua fala,
pudemos nos apropriar de sua história, suas preferências musicais e, assim,
estabelecer uma ponte de comunicação. Passamos a compreender o mundo que ela
trazia para a sala, que era compreendido por poucos, e em determinados momentos,
e por muitos era ignorado. Lançando um olhar para nossa experiência com a
Laura, vimos que o nosso trabalho foi permeado pelo desejo que ela falasse, que
ela aprendesse e que pudéssemos diminuir o abismo entre o discurso e a prática
inclusiva.
Pudemos
verificar o quanto as crianças com NEE são únicas e repletas de ensinamentos e
ver que a diferença delas para as outras crianças está, sobretudo, no nosso
olhar. Isso porque, muitas
vezes, eles costumam falar de forma não-convencional como denominamos
anteriormente. Mas eles falam. Na forma de nos olhar. No modo de gesticular.
Nas palavras, meias-palavras ou sons que produzem. Cada gesto, palavra,
meia-palavra ou som representa um diálogo que pulsa por significações. O
fascinante, e também árduo desafio é decifrar cada um destes códigos, uma por
uma destas formas de linguagem especial e única, que são marcadas pelos
singulares percursos de cada indivíduo. Estas descobertas nos deixaram
enxergar Laura em seu todo, em sua manifestação como ser, em sua linguagem, e
foram fundamentais no desenvolvimento deste acompanhamento.
Se
a linguagem é o único modo de podermos ser, quando não somos compreendidos
através da nossa fala, buscamos outras formas de expressão como a agressão. Com
o decorrer do trabalho percebemos a mudança de comportamento de todos: de Laura
em relação aos demais e destes em relação a ela. Munida de outras formas de
interação, ela não precisava agredir para se comunicar.
Verificamos a importância do vínculo
que se estabelece entre o at e o aluno acompanhado. Só com um bom vínculo que
se dará a aquisição de linguagem entre ambos.
Nossa experiência revelou que o AT pode ser
uma profícua ferramenta de trabalho no processo de inclusão escolar. Ele irá
estabelecer as pontes necessárias para que a pessoa possa se comunicar e
interagir com o meio que a cerca. Na medida em que o trabalho de AT consegue
estabelecer tais pontes, a presença do at passa a não ser absoluta e
indispensável. Esse é o maior objetivo de nosso trabalho, mas sabemos que para
alcançá-lo, precisamos inscrever a presença, a atenção às manifestações, a
decodificação dos códigos.
Referências
BARBOSA, Adriana Canepa. Acompanhante-acompanhado:
história de dois. In: SANTOS, R. G. (org.). Textos, texturas e tessituras no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Instituto A Casa / Editora
Hucitec, 2006.
FREUD,
Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. In: SIGMUND FREUD, Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud (J. Salomão, Trad.). Rio de
Janeiro, Imago. Vol. I. (Trabalho original publicado em 1895), 1987.
JERUSALINSKY, Alfredo. Falar uma criança. In: CENTRO
LYDIA CORIAT. Escritos da criança Nº1. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat,
1997.
REIS NETO,
Raymundo de Oliveira; TEIXEIRA PINTO, Ana Carolina e OLIVEIRA, Luiz
Gustavo Azevedo. Acompanhamento
terapêutico: história,
clínica e saber. Psicol. cienc. prof. [online].
31(1): 30-39, 2011.
WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
[1] Necessidades
Educacionais Especiais
[2] Nome fictício.
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O trabalho acima foi apresentado no "Simpósio de Acompanhamento Terapêutico e Saúde Pública", organizado pela ATTENDA, em agosto de 2012, em São Bernardo do Campo/SP.
Cíntia Viviane Ventura da Silva |
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