quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Acompanhamento terapêutico e a inclusão escolar: um estudo de caso


Cíntia Viviane Ventura da Silva – UFPel
Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto - Universidade Feevale


Nosso relato se refere ao trabalho de acompanhamento terapêutico escolar com uma aluna que fora acompanhada por nós, com diagnóstico de Transtorno Global do Desenvolvimento, durante o turno escolar, diariamente. A aluna estava na segunda série e apresentava dificuldades de aprendizagem e de relacionamento com os colegas. Em certos momentos demonstrava dificuldades de permanecer dentro da sala de aula, manifestando agressões aos colegas e aos objetos que estavam ao seu alcance. Sua fala era restrita, uma vez que pouco conseguia manifestar-se por meio de palavras. Nessa perspectiva, a demanda de trabalho consistia em favorecer o processo de inclusão dessa aluna, buscando uma maior autonomia em relação à linguagem e, consequentemente, às tarefas escolares.
Acompanhar uma criança com NEE[1] é uma tarefa que se renova a cada dia. As necessidades mudam, de modo que cada aula é uma demanda nova. Neste sentido, a presença de alguém com a função de estar atento aos códigos, ao pathos do aluno, bem como as suas potencialidades é algo fundamental. O estado de atenção do outro, que toma as manifestações da criança como apelo, numa perspectiva de comunicação, foi destacado por Freud ([1895]1987), ao falar sobre a experiência de satisfação. Freud entende que o desamparo do bebê requer a atenção de uma pessoa experiente, que toma o choro, entre outras descargas do excesso de tensão psíquica no corpo. Instaura-se um processo de comunicação em que o outro interpreta e inscreve o simbólico no corpo da criança.
Observamos esse aspecto e a importância do olhar do outro, na posição de at escolar, sobretudo, quando Laura[2] demonstra incômodo em alguns momentos de convívio com os colegas no espaço da sala de aula. Entendemos que aquela é uma vivência de excesso e diante disso, oferecemos à aluna a alternativa de sair da sala, no sentido de auxiliarmos a reconhecer essa experiência e a armar recursos para enfrentá-la. Nesse caso, não tomamos a saída como uma punição, procedimento comum no ambiente escolar, mas como uma via de recomposição subjetiva, a fim de viabilizar o seu retorno para sala de aula mais integrada. Nessas saídas, portanto, buscamos interpretar a sequência de fatos que a levou a ficar incomodada. Percebemos, nesse sentido, que a desorganização da turma ou até mesmo o fato de a professora aumentar o volume da voz a deixava incomodada, gerando um estado de desintegração.
Conforme Winnicott (1983), a desintegração é uma defesa sofisticada contra a ansiedade inimaginável da falta de segurança no estágio de dependência absoluta. O papel da integração do ego acontece no início do desenvolvimento emocional da criança quando ela está passando do estágio de dependência absoluta para a relativa e, por fim, para a independência. Ainda nas palavras do autor:

A integração está intimamente ligada à função ambiental de segurança. A conquista da integração se baseia na unidade. Primeiro vem o “eu” que inclui “todo o resto é não-eu”. Então vem “eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma interação introjetiva e projetiva com o não-eu, o mundo real da realidade compartilhada”. Acrescente-se a isso: “Meu existir é visto e compreendido por alguém”; e ainda mais: “É me devolvida (como uma face refletida em um espelho) a evidência de que necessito de ter sido percebido como existente” (Winnicott, 1983, p. 30).

Nessa perspectiva, consideramos o trabalho do at compatível com a função materna, sendo uma espécie de ego auxiliar, possibilitando ao aluno suportar o confronto com o não-eu. Sair da sala de aula é possibilitar a experiência de ter a sua existência percebida e compreendida, no sentido de tentar integrar a experiência que é vivida em pedaços.
As saídas de sala de aula também apresentam um caráter pedagógico, uma vez que possibilitam aprendizados. Entendemos que as saídas se constituem em uma “sala de aula itinerante”, na medida em que a aprendizagem não se restringe a um espaço físico. Sendo assim, além de reconhecermos e trabalharmos com os incômodos de Laura possibilitamos um espaço de aprendizagem na volta no ginásio, na leitura de um livro que na biblioteca, no caminhar entre as árvores no pátio cantando cantigas, etc.
Todas as crianças são únicas em sua expressividade e as crianças com NEE não fogem a esta regra. A diferença entre elas não está somente no modo como elas falam, andam, sentem ou vivem. Está, sobretudo, no modo como nós as percebemos. Conforme Jerusalinsky (1997, p. 23), “o que não se diz, de alguma maneira, necessariamente, se manifesta”. Laura manifestava através do contato físico bruto, o desejo de conhecer o outro, de estabelecer os contornos entre o eu e o outro, enfim, de inscrever uma relação. Pudemos entender isso ao analisar com quem ela tinha este tipo de atitude. Observamos que a maior frequência destas situações (de agressão) era justamente com as meninas pelas quais ela demonstrava mais afeição. Desta forma, para nós ficou claro que suas formas bruscas de interagir eram apenas tentativas de comunicar-se com os outros colegas, buscando estabelecer um contato e uma troca.
            Numa das várias situações em que para Laura era insuportável estar dentro da sala de aula e nos demonstrava isso de forma agressiva, atirando os materiais no chão, machucando os colegas, etc., ao dar uma volta pela escola, a at permitiu que a aluna a guiasse. Laura, então, lhe pediu que a levasse para a pista de atletismo da escola, um lugar arborizado, com muitos passarinhos e canteiros de flores. No caminho, Laura e a at foram cantando inúmeras cantigas, sobretudo, aquelas cantadas na sala de aula. Nos intervalos, ela reproduzia sons que, inicialmente, para a at, eram estranhos. Ela dizia por exemplo: “êêêê-tinnnnnhu-élliiiiiiiiiinho-ão-a-ninha-ão” dirigia o olhar para a at e pedia que ela cantasse. Essa cena repetiu-se inúmeras vezes, até que a at entendeu que o “êêêê-tinnnnnhu-élliiiiiiiiiinho-ão-a-ninha-ão” era “meeeeu pintinho amareliiiiinhooooo, cabe aqui na minha mão, na minha mão”. O sentimento vivido pela acompanhante e pela acompanhada foi de comunhão, foi de encontro. Afinal, a at estava escutando-a e entendo-a. Tal olhar atento da at foi possível, sobretudo, nesses momentos de encontros fora da sala de aula. Nesse sentido, sair da sala de aula com o aluno não é um sinal de fracasso pedagógico. As saídas possibilitam um olhar mais atento à subjetividade do aluno, permitindo um trabalho que seria limitado na sala de aula, diante dos demais colegas.
            Bem como as saídas permitem contemplar a subjetividade do aluno de forma mais centrada, também a presença do acompanhante terapêutico, mesmo dentro da sala de aula, possibilita a captação de códigos de comunicação que por vezes passam despercebidos. É o caso acontecido quando de nosso passeio a um museu de tecnologia de uma universidade. No referido museu, havia uma máquina onde as crianças apoiavam as palmas das mãos e quando o assistente acionava o mecanismo as crianças recebiam descargas elétricas leves, mas suficientes para que seus cabelos ficassem arrepiados e levantassem contra a gravidade. Já na sala de aula, no dia posterior ao passeio a professora pergunta aos alunos o que mais gostaram no museu. Antes que qualquer um dos alunos responda verbalmente, Laura leva suas mãozinhas ao cabelo e o levanta, imitando o efeito que a máquina produziu.  Estando ao lado de Laura, a at pode perceber sua fala em forma de gesto e chamar a atenção da professora que ouvia as falas dos outros alunos excitados em expressar suas percepções do museu. Desta forma, sua expressão e sua percepção puderam também ser ouvidas.
Reis Neto (2011) fala do indivíduo condenado a uma solidão por sua comunicação delirante ou inadequada. Conforme o autor, este indivíduo não promove o laço social por não ter sua bizarrice compreendida. Em casos assim, o AT pode facilitar a criação de novos laços, oferecendo a escuta que abre à singularidade (REIS NETO, 2011).
Nas palavras de Jerusalinsky (1997, p. 15), “o sujeito humano não é mais do que linguagem, e fora dela não é nada”. A linguagem é o único campo onde o sujeito pode se articular, o único modo de ser é o falar. Corso (1997) afirma que poder instalar uma transferência permeada de escuta e de olhar é um “passaporte para a linguagem” (p.28). Podemos, nesse sentido, pensar acerca da importância de se estabelecer, através do vínculo, um canal de comunicação com o aluno com NEE, levando-se em conta que não estaremos apenas conversando ou entendendo, e sim permitindo que um sujeito ali se constitua, entendendo aqui sujeito como sendo da linguagem.

                                      É preciso entender, é preciso ser entendido. É preciso escutar, é preciso falar. É preciso, acima de tudo, estabelecer um tipo de comunicação. Frases banais, perfeitas para um manual de relacionamentos. Aqui, no entanto, referem-se a algo pouco óbvio, e muito menos corriqueiro. Comunicar-se por meio da fala e da escuta requer, para além do interesse, uma língua comum. Entender e ser entendido são tarefas pouco simples no diálogo entre neurose e psicose, situação frequente nas histórias de acompanhamento. Dois discursos que, numa conversa, correm o risco da surdez, da não-escuta (BARBOSA, 2006, p. 29).

            Por este episódio da descrição do museu de tecnologia visitado pelos alunos, podemos dizer que Laura entendeu. Foi entendida. Escutou. E também falou!
No decorrer de nosso acompanhamento Laura foi aos poucos se integrando à rotina da turma e diminuindo os episódios de agressão. Pôde suportar por mais tempo o estar em sala de aula, espaçando cada vez mais a necessidade de sair para o pátio. Tendo respeitado o seu desenvolvimento emocional, conseguiu sentir segurança no ambiente em que estava inserida.
            Através do holding desempenhado pela at foi possível realizar um trabalho de caráter inclusivo. Desmistificando sua fala, pudemos nos apropriar de sua história, suas preferências musicais e, assim, estabelecer uma ponte de comunicação. Passamos a compreender o mundo que ela trazia para a sala, que era compreendido por poucos, e em determinados momentos, e por muitos era ignorado. Lançando um olhar para nossa experiência com a Laura, vimos que o nosso trabalho foi permeado pelo desejo que ela falasse, que ela aprendesse e que pudéssemos diminuir o abismo entre o discurso e a prática inclusiva.
            Pudemos verificar o quanto as crianças com NEE são únicas e repletas de ensinamentos e ver que a diferença delas para as outras crianças está, sobretudo, no nosso olhar. Isso porque, muitas vezes, eles costumam falar de forma não-convencional como denominamos anteriormente. Mas eles falam. Na forma de nos olhar. No modo de gesticular. Nas palavras, meias-palavras ou sons que produzem. Cada gesto, palavra, meia-palavra ou som representa um diálogo que pulsa por significações. O fascinante, e também árduo desafio é decifrar cada um destes códigos, uma por uma destas formas de linguagem especial e única, que são marcadas pelos singulares percursos de cada indivíduo. Estas descobertas nos deixaram enxergar Laura em seu todo, em sua manifestação como ser, em sua linguagem, e foram fundamentais no desenvolvimento deste acompanhamento.
Se a linguagem é o único modo de podermos ser, quando não somos compreendidos através da nossa fala, buscamos outras formas de expressão como a agressão. Com o decorrer do trabalho percebemos a mudança de comportamento de todos: de Laura em relação aos demais e destes em relação a ela. Munida de outras formas de interação, ela não precisava agredir para se comunicar.
            Verificamos a importância do vínculo que se estabelece entre o at e o aluno acompanhado. Só com um bom vínculo que se dará a aquisição de linguagem entre ambos.
Nossa experiência revelou que o AT pode ser uma profícua ferramenta de trabalho no processo de inclusão escolar. Ele irá estabelecer as pontes necessárias para que a pessoa possa se comunicar e interagir com o meio que a cerca. Na medida em que o trabalho de AT consegue estabelecer tais pontes, a presença do at passa a não ser absoluta e indispensável. Esse é o maior objetivo de nosso trabalho, mas sabemos que para alcançá-lo, precisamos inscrever a presença, a atenção às manifestações, a decodificação dos códigos.

Referências

BARBOSA, Adriana Canepa. Acompanhante-acompanhado: história de dois. In: SANTOS, R. G. (org.). Textos, texturas e tessituras no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Instituto A Casa / Editora Hucitec, 2006.
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. In: SIGMUND FREUD, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro, Imago. Vol. I. (Trabalho original publicado em 1895), 1987.
JERUSALINSKY, Alfredo. Falar uma criança. In: CENTRO LYDIA CORIAT. Escritos da criança Nº1. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 1997.
REIS NETO, Raymundo de Oliveira; TEIXEIRA PINTO, Ana Carolina  e  OLIVEIRA, Luiz Gustavo Azevedo. Acompanhamento terapêutico: história, clínica e saber. Psicol. cienc. prof. [online]. 31(1): 30-39, 2011.
WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.



[1] Necessidades Educacionais Especiais
[2] Nome fictício.

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O trabalho acima foi apresentado no "Simpósio de Acompanhamento Terapêutico e Saúde Pública", organizado pela ATTENDA, em agosto de 2012, em São Bernardo do Campo/SP.

Cíntia Viviane Ventura da Silva





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